Dar a Palavra é uma rúbrica da newsletter da FlorestGal destinada a ouvir especialistas em áreas charneira do combate às alterações climáticas, resiliência das florestas e recuperação dos ecossistemas. Temas que a nossa convidada Isabel Santos Silva trata de forma clara nesta breve conversa.
A União Europeia aprovou a Nature Restoration Law que exige aos países as medidas necessárias para recuperar 20% das áreas terrestre e marinhas. É um bom “empurrão” para as ações de combate à desertificação em Portugal?
A Lei do Restauro da Natureza é um importante marco legislativo que visa dar resposta ao acelerado declínio da biodiversidade na Europa, reconhecendo que a conservação dos habitats e das espécies protegidas pela Diretiva Habitats e Diretiva Aves e a classificação de áreas na rede Natura 2000 garantem a sua proteção, mas não viabilizam o restauro dos ecossistemas. Para além do referido, estabelece como visão a recuperação sustentada e a longo prazo dos ecossistemas degradados; a atenuação e adaptação às alterações climáticas; a neutralidade da degradação dos solos e o reforço da segurança alimentar. É uma peça legislativa ambiciosa e complexa, mas também necessária e urgente para a concretização dos compromissos estabelecidos internacionalmente. As metas definidas nesta lei abrem caminho para um processo de recuperação dos ecossistemas, que a nível Europeu e nacional, não se conhecem precedentes – por esse motivo, a recuperação de solos degradados por via do restauro dos ecossistemas, sobretudo os florestais e agrícolas, bem como a reversão do declínio dos polinizadores, apresentam-se como ganhos notáveis para travar a desertificação em Portugal.
É evidente que o restauro dos ecossistemas com o enfoque na proteção do solo afigura-se como um valioso “empurrão” para o combate à desertificação em Portugal
Nos últimos 2/3 anos temos vindo a assistir a um crescimento dos projetos de âmbito regional e local com medidas específicas de combate à desertificação, cuja génese, se enquadra nos objetivos que a lei do restauro também contempla, como por exemplo a valorização do ciclo de carbono através da incorporação de matéria orgânica nos solos agrícolas, melhorar a biodiversidade das áreas agrícolas através de culturas biodiversas e adaptadas, o fomento de práticas de mobilização mínima do solo em áreas suscetíveis à desertificação, a florestação com espécies autóctones, o uso eficiente da água, entre outras, que concorrem também para medidas de adaptação às alterações climáticas e simultaneamente que respondem à Estratégia da Biodiversidade da UE 2030.
À semelhança da sinergia entre as três convenções do Rio (UNCCD, UNFCCC, UNCBD), também a Lei do restauro da Natureza e a Diretiva dos Solos Saudáveis são peças legislativas fundamentais para travar a desertificação em Portugal. Entendendo-se a desertificação como a degradação da terra nas zonas áridas, semiáridas e sub-húmidas secas, resultante de vários fatores, incluindo as variações climáticas e as atividades humanas, é evidente que o restauro dos ecossistemas com o enfoque na proteção do solo afigura-se como um valioso “empurrão” para o combate à desertificação em Portugal.
Apesar dos dados do Plano de Ação Nacional de Combate à Desertificação apontarem para 36% do território nacional afetado, com tendência para agravar, será o solo o parente pobre das preocupações ambientais da comunidade?
Efetivamente temos vindo a assistir a um aumento da proporção do território nacional suscetível à desertificação. Os 36% referidos no Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação são relativos à série de 30 anos (1960-1990), já para a série de 1980-2010 a proporção do território suscetível à desertificação aumentou para 58%, portanto no período de 1960 a 2010 a suscetibilidade à desertificação aumentou 22%. De acordo com os últimos dados disponíveis para o último período de observação 1990-2020, a classe de semiárido reflete-se em 61% do território nacional.
Estes números são de facto muito preocupantes sobretudo se considerarmos que os cenários climáticos projetam um aumento previsível das ondas de calor, das temperaturas máximas estivais e da diminuição da precipitação primaveril o que conduz ao agravamento de situações de seca e, consequentemente, ao aumento dos riscos de incêndio. Trata-se de um problema global, com implicações graves para a biodiversidade, para a segurança alimentar e ambiental, para a erradicação da pobreza, para a solidez socioeconómica e para o desenvolvimento sustentável.
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, mostram como é fundamental melhorar a retenção de água, a fertilidade do solo, a regulação climática e a biodiversidade, aumentar a resiliência e diminuir a suscetibilidade à desertificação com metas como a do objetivo 15 “Proteger a vida terrestre”, e mais concretamente a meta 15.3.1 que pretende alcançar a neutralidade da degradação das terras até 2030.
Se apostarmos na preservação das funções do solo, numa agricultura e floresta sustentáveis, sistemas alimentares seguros, trabalhar na resiliência climática, reverter a perda da biodiversidade, reduzir a poluição dos solos e das águas, caminharemos para o cumprimento dessa meta.
De acordo com os dados da ONU, 2 mil milhões de hectares de terras, outrora produtivas, estão degradadas e mais de 70% dos ecossistemas naturais sofreram transformações. Até 2030, prevê-se que a produção alimentar exija 300 milhões de hectares adicionais de terra, mas ainda assim a degradação das terras, com a inerente perda de biodiversidade e do potencial produtivo dos solos, teima em persistir.
Entre os principais motores para a degradação das terras encontram-se a erosão do solo, as práticas de gestão insustentável da terra, as alterações de uso e ocupação do solo, a seca, os fogos rurais e a salinização.
O fenómeno da desertificação já não se confina apenas aos países do Sul, os cenários das alterações climáticas confirmam a crescente vulnerabilidade da União Europeia à Desertificação e consequentemente observa-se uma maior preocupação com a preservação da saúde do solo ao nível da UE.
Assim, passados mais de 20 anos sobre a publicação da Diretiva Quadro da Água e mais de 15 anos sobre a publicação da Diretiva Quadro da Qualidade do Ar e da Diretiva Quadro Estratégia Marinha assistimos, finalmente, à apresentação da Diretiva Monitorização do Solo.
A proposta de Diretiva contempla uma valiosa perspetiva de travar a degradação das terras, prevenir a erosão dos solos, proteger e conservar a biodiversidade dos solos e o seu papel como ecossistema central para a manutenção e bom funcionamento dos demais ecossistemas terrestres. Simultaneamente, a proteção dos solos inscrita nesta Diretiva, prevê que seja controlado o processo de tomada da terra (land take), bem como se monitorize as diversas formas de artificialização do solo, como forma de travar os seus impactos na perda de serviços de ecossistema e na perda da biodiversidade.
Pode-se concordar que até 2021, altura da publicação da Estratégia dos Solos da UE para 2030 o solo seria “o parente pobre das preocupações ambientais da comunidade”, mas com os trabalhos em curso, espera-se para muito em breve uma mudança de paradigma e que os solos passem a constar do centro das preocupações quando pensamos, nomeadamente em ordenamento do território, atividades agrícolas, florestais e gestão de resíduos. Note-se que a taxa de formação de solo é de 0,1 a 1mm de espessura por ano, enquanto as taxas de perda por erosão poderão atingir valores muitíssimo superiores, em situações extremas de mobilização agrícola 20-30 cm por ano, compreendendo-se facilmente a necessidade de preservação deste recurso não renovável, e a sua importância vital para a vida na terra.
A porta do processo legislativo está aberta para a preservação do solo, mas o caminho para atingir os solos saudáveis até 2050 depende não só das politicas mas também do papel de cada um de nós para a preservação desse recurso de valor inestimável.
Colocar o solo no centro das preocupações, previamente a qualquer tomada de decisão de intervenção, é a melhor opção a seguir.
O que fazer para mudar o paradigma?
A mudança de paradigma já se iniciou ao nível do Processo legislativo, a orientação já foi dada pelo Conselho da UE no passado dia 17 de junho e prevê-se que a nova Presidência inicie conversações com o Parlamento Europeu sobre os contornos finais do texto.
Após a publicação da Diretiva Monitorização do Solo, o Estado Português terá um prazo para a transposição para o direito nacional que se prevê de cerca de 5 anos, após entrada em vigor da Diretiva. Passa-se então a dispor de um documento orientador, nomeadamente para a gestão sustentável do solo e para a prevenção da sua contaminação, com obrigatoriedade de monitorização periódica.
O caminho está traçado em termos legislativos, mas para uma mudança de paradigma efetiva é necessário muito mais do que o processo legislativo é necessário colocar o solo no centro das preocupações/decisões de uma exploração agrícola ou florestal, pois estamos perante um recurso não renovável e que deve estar otimizado nas suas funções para que possamos tirar o seu melhor partido, produzindo mais e utilizando menos recursos, salvaguardando a componente ambiental do sistema.
O solo deve ser a principal preocupação dos agricultores, gestores, proprietários e técnicos.
É necessário atuar ao nível da adaptação da utilização da terra às suas condições naturais e não o contrário, selecionar a cultura e depois adaptar o solo até poderá funcionar a curto prazo, mas a médio longo prazo apenas estamos a contribuir para uma maior degradação do solo e do ecossistema envolvente e consequentemente para a desertificação.
É assim fundamental que cada exploração tenha apoio técnico especializado e idealmente um projeto de engenharia associado. Fazer chegar a capacitação aos gestores, proprietários e agricultores/ produtores florestais – será sim, a grande mudança de paradigma. Atualmente, existe muito conhecimento técnico assente em preocupações de sustentabilidade, assim como instrumentos e mecanização direcionada para esse fim, mas que não chega ao agricultor/produtor florestal. Pese embora as associações de agricultores e produtores florestais disponham de técnicos credenciados e disponíveis para prestar esse apoio seria fundamental que o Estado também investisse nessa vertente, aliás como em tempo já investiu. As ações conducentes à mudança de paradigma podem começar já sem aguardar a publicação de atos legislativos, começar por colocar o solo no centro das preocupações de uma exploração e capacitar os agricultores/produtores florestais para a sua preservação enquanto recurso finito, está para já ao nosso alcance.
Um solo saudável tem a capacidade de fornecer múltiplos serviços de ecossistema a uma escala suficiente para satisfazer as necessidades ambientais, sociais e económicas, prevenir e mitigar os impactos das alterações climáticas e da perda de biodiversidade, aumentar a resiliência contra as catástrofes naturais e para a segurança alimentar.
Quando a maioria dos cenários climáticos apontam para períodos de seca cada vez mais prolongados, a opção pela diversidade de culturas, culturas menos exigentes em água, de variedades autóctones associadas a práticas de gestão sustentável do solo, conduzem a uma maior sustentabilidade do sistema.
A exploração intensiva e hiperintensiva, que teimosamente se tenta praticar em solos já de si de baixa fertilidade, está a acelerar o processo erosivo, a degradar as terras e a contribuir para a perda de biodiversidade, antecipando-se um cenário de aumento da desertificação em Portugal.
O que fazer para chegar aos cidadãos?
A formação e a sensibilização dos cidadãos para as matérias da desertificação e degradação das terras devem ser melhoradas, passando sobretudo pela incorporação deste léxico seja no discurso político, seja nos meios de comunicação social. A seca, que também faz parte da tríade de preocupações abordada pela UNCCD, tem uma melhor comunicação e o seu impacto é mais facilmente sentido pela população - um ano com menor precipitação poderá significar menores condições de abastecimento doméstico e industrial de água, abre-se a torneira e a disponibilidade, por exemplo para a rega é diminuta – a causa-efeito deste problema é ancestral e tem uma comunicação muito fácil.
A promoção de ações de capacitação gratuita ou a um preço simbólico, promovidas pelos organismos públicos, associações de produtores, associações de desenvolvimento local, ONG´s têm um papel fulcral, sobretudo pela proximidade aos atores locais. Contudo, essas ações deverão revestir-se de um caráter prático e demonstrativo das mais valias económicas de determinada opção. Colocar o solo no centro das preocupações, é a tal mudança de paradigma que leva a excelentes resultados na produtividade e nos serviços de ecossistema, mas a uma escala temporal longa.
É fundamental o contacto com casos práticos, casos de estudo, partilha de boas práticas e a promoção do diálogo de proximidade entre os seus pares pois facilitará a mudança de atitude e a opção pelas melhores práticas.
Ao nível do cidadão comum provavelmente poderá ter de se de recuar aos manuais escolares e às aprendizagens primordiais – naturalmente uma população mais urbana (também com água sempre disponível na torneira) ter-se-á afastado do campo, da realidade quotidiana dos meios rurais. Assim, é possível que a introdução destes temas nas disciplinas de base, como a história, geografia, ciências naturais e cidadania possam vir a contribuir para uma maior sensibilidade e conhecimento destas matérias pela população escolar em geral.
Os órgãos de comunicação social, também desempenham um papel primordial na sensibilização da população. É urgente que a população entenda que as questões da desertificação, degradação dos solos e seca são transversais, pelas suas inter-relações tanto com as causas como com as consequências das alterações climáticas nos recursos naturais, como o solo, o ar, a água e a biodiversidade e que a expansão destes fenómenos conduz à perda de rendimento, à perda de biodiversidade, à redução de bens alimentares e consequentemente à perda de qualidade de vida e, no limite, poderá conduzir a migrações populacionais.
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